Se, por vezes, meus olhos gravassem em fotografia o que vêem...
Ao meu lado, na camioneta à ida para a outra escola, estava uma rapariguita novita. Com um ar extremamente exausto tirou de sua mochila um caderno A4 e, depois de procurar um lápis em seu estojo, começou a desenhar... de início pareciam só bolas... mas enquanto desenhava, intercalava suas linhas com algumas letras escritas em quadra. De vez em quando, quando a curva na estrada onde íamos era mais deitada, ela reparava que, de tão encolhida que estava, tinha tendência em “pendurar-se” em mim para escrever melhor. Eu nem me mexia! Também estava cansada, e não me incomodava, até porque o meu olhar fintava-se na janela, não no que se via pela janela, mas no que se via para lá de toda essa paisagem quotidiana, stressante e chata. Sim, chata! Por isso até eu me perdia. E quando dava conta, ela desencostava-se do meu braço com mais uma curva, que me fazia sentir que estava num lugar físico...
Quando dei por isso já tinha chegado à Póvoa... Virei um pouco os olhos em sentido contrário à “profunda” janela e, no meio de erros ortográficos e uma letrinha tremida (da camioneta), li a pequena frase, escrita separadamente por quatro linhas. Falava duma maneira subtil e inocente, o trágico último jogo de Feher. As palavras utilizadas eram extremamente simples, como por exemplo a expressão “falta de repiração”. Os seus desenhos condiziam com as características de suas palavras. Os bonecos, leves e tremidos, eram bolas e riscos... cada bonequinho tinha uma legenda apontada por uma seta dizendo “amigo”, “médico”, “jogador”...
Pedi-lhe licença, para me deixar passar. Num movimento de timidez levou seu caderno do colo ao peito, de forma a esconder o que fizera e desviou-se um bocadinho. Agradeci-lhe e saí da camioneta.
Isto e tantas outras cenas que me fizeram pensar, se têm sucedido... O problema é que na altura vejo, penso e interpreto. Procuro guardar para mim, mas à noite, depois de tanto cansaço, lembro-me só da moral das histórias, mas sem imagens...
Hoje foi a suposta última aula de Alberto Caeiro a Português. Ele, mais um heterónimo de Fernando Pessoa, que disse expressões como:
“o único sentido íntimo das cousas, é elas não terem sentido íntimo nenhum”
ou mesmo
“com filosofia não há árvores, há ideias apenas”
... fez-me pensar imenso. Ele, o poeta da natureza, que acreditava no que via, no que os sentidos lhe davam... mas não acreditava no pensar, como se pensar fosse o mesmo que sair da realidade... Será que hoje em dia não pensamos demais?!...
Agora chove. Não, não “vejo” a chuva a cair, mas oiço os tambores pequeninos a baterem... Está frio. Minha gata aquece-me, sentada ao meu colo, mas... à tanta coisa tão mais fria que este frio que se faz sentir...
Vou aproveitar a pouca luz que ainda há para ver, sentir e ouvir as teclas do meu piano, numa concordância musical com as gotinhas de água a soarem como tambores... :) Depois, deverei “fechar os olhos e dormir” (como dizia Caeiro num dos seus últimos poemas, mas com sentido contrário ao meu, claro).
É Noite
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?
(Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos)
Quando dei por isso já tinha chegado à Póvoa... Virei um pouco os olhos em sentido contrário à “profunda” janela e, no meio de erros ortográficos e uma letrinha tremida (da camioneta), li a pequena frase, escrita separadamente por quatro linhas. Falava duma maneira subtil e inocente, o trágico último jogo de Feher. As palavras utilizadas eram extremamente simples, como por exemplo a expressão “falta de repiração”. Os seus desenhos condiziam com as características de suas palavras. Os bonecos, leves e tremidos, eram bolas e riscos... cada bonequinho tinha uma legenda apontada por uma seta dizendo “amigo”, “médico”, “jogador”...
Pedi-lhe licença, para me deixar passar. Num movimento de timidez levou seu caderno do colo ao peito, de forma a esconder o que fizera e desviou-se um bocadinho. Agradeci-lhe e saí da camioneta.
Isto e tantas outras cenas que me fizeram pensar, se têm sucedido... O problema é que na altura vejo, penso e interpreto. Procuro guardar para mim, mas à noite, depois de tanto cansaço, lembro-me só da moral das histórias, mas sem imagens...
Hoje foi a suposta última aula de Alberto Caeiro a Português. Ele, mais um heterónimo de Fernando Pessoa, que disse expressões como:
“o único sentido íntimo das cousas, é elas não terem sentido íntimo nenhum”
ou mesmo
“com filosofia não há árvores, há ideias apenas”
... fez-me pensar imenso. Ele, o poeta da natureza, que acreditava no que via, no que os sentidos lhe davam... mas não acreditava no pensar, como se pensar fosse o mesmo que sair da realidade... Será que hoje em dia não pensamos demais?!...
Agora chove. Não, não “vejo” a chuva a cair, mas oiço os tambores pequeninos a baterem... Está frio. Minha gata aquece-me, sentada ao meu colo, mas... à tanta coisa tão mais fria que este frio que se faz sentir...
Vou aproveitar a pouca luz que ainda há para ver, sentir e ouvir as teclas do meu piano, numa concordância musical com as gotinhas de água a soarem como tambores... :) Depois, deverei “fechar os olhos e dormir” (como dizia Caeiro num dos seus últimos poemas, mas com sentido contrário ao meu, claro).
É Noite
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?
(Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos)
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